domingo, 13 de abril de 2014

Duas ou três lembranças sobre infância e adolescência 

Três e meia da tarde da última semana de outubro de 1965. A jovem levada para um hospital em Santo André , já sentia o bebê chutando e pela contagem dos meses deveria ser o momento do nascimento do seu primeiro filho.
Quando chegou na entrada da maternidade foi logo foi amparada por uma sorridente freira, da ordem Mariana, que dava plantão por lá. Não demorou e foi também atendida por duas enfermeiras que já trataram de iniciar os preparativos para o serviço de parto.
Ela não se recorda com muita precisão, apenas uma dor diferente e uma sensação de desmaio. Após alguns minutos desacordada e sedada, despertou com o brado da religiosa:
- É um menino ! Moreninho e com bastante cabelo ! 

Nasci desta forma, numa tarde do dia 26 e rodeado de outras crianças que lotaram o berçário naquele dia. Meu pai, consta, ficou sabendo da notícia com algumas horas de atraso, quando um tio telefonou até a firma onde ele trabalhava, uma das muitas multinacionais estrangeiras que haviam se instalado na região do ABC naquela década.
Num misto de felicidade e alívio ele me viu pela primeira vez.
- Ah! Tem os olhos do pai ! , disse alguém próximo
- Já escolheu o nome ? perguntou o cunhado.
O fato é que nos últimos dias daquele mês eu fui o centro das atenções da família e dominei todas as conversas.

Minhas mais remotas recordações não retrocedem muito. Talvez o cérebro já tenha se avariado nestes 45 anos e alguns neurônios se perderam por aí. Minha mais antiga lembrança é de minha mãe amamentando minha irmã mais nova num simples sofá vermelho listrado, que hoje, com este culto ao design retrô, seria uma mobília vintage muito disputada. A casa era sempre iluminada pela luz que vinha das janelas e a mesa de fórmica da cozinha era vermelha com umas pintinhas marrons que dava um aspecto meio psicodélico ao móvel.
Minha irmã é cinco anos mais nova  e nasceu em 1970. Junto com a cena de amamentação, me lembro também de uma tarde quando o céu estava muito claro e forrado de balões. Dizem que nossas memórias infantis tendem a crescer muito em proporção e qualquer moeda vira “muito dinheiro” e uma ou duas flores se transforma “num enorme jardim”. Se eu tinha cinco anos e me recordo da minha irmã bebezinha e dos balões no céu, muito provavelmente devo ter gravado no HD cerebral as manifestações do povo com a conquista do tricampeonato mundial no México.

Nunca li com afinco assuntos relacionados à psicologia,  pouco mais do que alguns artigos e textos breves em jornais. Quase sempre resenhas de livros como uns testes de Rorschach (por causa do personagem do Watchmen) e um livro de Jung falando de mitos e mitologia. Mas já esqueci tudo. Falo de psicologia porque acredito que as experiências de tenra infância moldam de certa forma o caráter e apontam de certa forma para o que seremos  no futuro. É sobre isso que trata este texto: labirintos emocionais que nos afastam e aproximam de lugares e pessoas. 

Minha casa, uma casa simples e comum como todas as outras do bairro, tinha um quintal de terra, um limoeiro, um abacateiro e um corredor cimentado. Pois foi neste corredor lateral, que ligava o portão da frente com o quintal dos fundos, que certamente eu passei a maior parte da minha infância. Entre os meus cinco e dez anos de idade me lembro de minha mãe sempre muito atarefada e sempre me alertando para não ir para a rua. O que na época eu não sabia era o motivo das constantes correrias de minha mãe e sua cara sempre preocupada. Hoje percebo que o motivo era minha avó, sempre muito doente (aliás não me lembro de um único dia em que ela estivesse com a saúde plena e mesmo assim ela sempre estava sorrindo…

Um grande acontecimento da minha infância foi o aniversário dos sete anos. Já havíamos nos mudado para três casas acima na mesma rua e houve uma espécie de troca: minha avó veio morar na minha casa e minha família na casa dela. Como a casa de baixo era maior e meus tios, cinco no total, quatro ainda solteiros , moravam com ela,todos necessitavam de uma casa maior, motivo da troca.
Mas eu falava de meu aniversário de sete anos. Sim, foi algo realmente memorável. Neste dia meus tios Martinez , Marlos e meu pai compraram cada um uma caixinha de futebol de botão e logo eu descobriria o prazer daquela diversão mágica.
Eram da marca “Craques da Pelota”, os botões, aqueles vidrinhos semelhantes àos dos relógios estampavam a fotografia dos jogadores que eram presos com uma circunferência menor na parte inferior. Ao todo eram três times: Palmeiras, Portuguesa e Santos. Virei palmeirense neste dia, outubro de 1972 ; só depois entendi que o Verdão era o melhor clube daquele ano. Decorei então a escalação: Leão, Eurico, Luis Pereira, Alfredo e Zeca, Dudu, Leivinha e Ademir da Guia, Edu, César e Nei.
No Santos me recordo do Brecha, Clodoaldo, Cejas, Pelé e Edu. Da Portuguesa os inesquecíveis Badeco, Dicá, Enéas e Tatá.
O meu campeonato de três clubes não terminava nunca e tamanha fixação despertou o interesse de um vizinho chamado Pedrinho, de família crente e com vários irmãos. Entre nós uma grande afinidade e uma diferença:
- Não posso ir na sua casa, nem sair para a rua ! disse certa vez para ele.
- Por quê ? Sua mãe não deixa ?

O que deveria ser uma simples pergunta soou como um desafio e então, escondido de minha mãe “ousei” desobedecer a ordem (ela estava mais uma vez socorrendo minha avó) e fui até a casa daquele novo e inesperado amigo.
Fui apresentado aos seus irmãos: Osmar (três anos mais velho do que eu) e João, já de maior e prestes a se casar.

Um certo dia consegui a proeza de ser atropelado por um Aero-Willys marrom na minha própria rua quando voltava da casa deste coleguinha de infância. Sete anos depois eu retornava ao mesmo hospital e avistava novamente, agora de maneira (in)consciente a religiosa toda de negro, uma freira com certeza, que ainda ajudava e abençoava as crianças por lá.
Ganhei uma caixa de Sonho de Valsa, um luxo para a época, e flores vermelhas , me recordo do meu pai aceitando as desculpas do homem que afirmava que “o menino saiu do nada e quando vi já estava debaixo do carro”.
Sei que as rodas do veículo, pesado e muito grande se comparado àos Gordinis e Sedans, não chegaram a passar sobre mim, mas me lembro do impacto e da minha rolagem pela rua várias vezes como uma bola de futebol. A sorte grande, se é que existe alguma em casos assim, foi o fato de estranhamente minha rua ter sido uma das últimas do bairro a ser asfaltada e portanto o impacto do acidente ter se desenrolado num chão de terra.
Se pudesse traçar um paralelo, com algo ou alguém, diria que o acidente só amplificava a minha situação e me tornei o próprio passarinho preso na gaiola. Nada me era permitido após o acidente. Eu que estava na idade onde as crianças cometiam suas peraltices até que não reclamei muito, minha mãe tinha o dia preenchido em cuidados com minha avó, cada vez mais doente, e meu pai trabalhava até altas horas da noite ( tempos das tais horas-extras, espertamente inventada pela indústria num período de sindicalismo ainda nascente, recurso que aumentava sua produção às custas do suor da peãozada).

Os meses pós acidente se passavam e cismaram que eu estava estranho e algo precisava ser feito para me animar. Meus pais iam muito àos parques de diversão da região e à então recém inaugarada Cidade da Criança em São Bernardo do Campo. A entrada deste parque exibia uns bonecos do Horácio, Jotalhão, Mônica, Cebolinha e Cascão que me encantaram logo de cara. Numa conversa com meu tio Martinez minha mãe disse que quando eu ia ao parque não queria mais sair de perto da portaria e tentava adiar a ida para os outros cantos. Meu tio registrou com atenção a informação. 

Uma manhã meu pai chega do trabalho com A Gazeta Esportiva que estampava uma edição com vários times posados naquela pose clássica imortalizada até hoje com defesa em pé e ataque agachado. Exigi do meu pai mais times de botão. Ele atendeu com prazer o pedido e marcou o seu melhor gol como pai.

Em 1972, graças à A Gazeta Esportiva e os botões, eu já lia com desembaraço fato que me facilitou muito a vida na escola. No meu primeiro dia de aula sentei na penúltima carteira, no fundo da classe, ao lado de uma menina chamada Cristina. Afinidade total pois éramos os únicos da classe usando óculos e aquele par de quatro-olhos chamou a atenção da professora que nos transferiu para as  carteiras da frente, sempre ficávamos lado ao lado. Com sete anos descobri que havia um mundo habitado por garotas. 

Dois anos se passaram e eu já podia brincar na rua, desde que eu não fosse para muito longe de casa e avissase minha mãe.
Numa tarde qualquer do primeiro semestre de 1974, fui até a casa do meu vizinho Valdemir que me mostrou a coleção de futebol de botão do Gilson, seu irmão mais velho. Quase cai de costas. O Gilson, que tinha uns 25 anos e passava o dia todo lavando e lustrando um Dodge Dart azul, comprava a revista Placar que publicava em toda edição 22 escudinhos. A tática malandra da Editora Abril era a seguinte: numa edição ela colocava em suas páginas os escudinhos de duas equipes diferentes mas nunca com o time completo. O leitor tinha que comprar duas edições seguidas, já que os times só se completavam de duas em duas edições. Ao perceberem o sucesso da empreitada, aumentaram para três clubes, e a mesma fórmula se repetiu agora com uma trinca de revistas. 

O Gilson me ensinou uma coisa bem legal: nos botões da marca Bolagol ,onde uma pequena lente do tamanho de uma moeda de  5 centavos perfurava a circunferência do botão fazendo uma cavidade, dava para inserirmos distintivos desenhados por nós mesmos já que não agüentávamos a morosidade dos editores da Placar.
Assim, com apenas  quatro times tínhamos um campeonato todo e guardávamos os escudinhos dentro de caixinhas de fósforos (que faziam o papel de goleiro); a bola era achatada como um comprimido e muitas vezes substituídas por botões de camisa. Aliás se tinha uma coisa que minhas camisas não tinham eram botões...
Em junho daquele ano a Alemanha Ocidental sediou a Copa do Mundo e me interessei em conhecer aqueles heróis do planeta bola. Estava na escola quando assisti à Holanda ganhar de dois à zero e eliminar o Brasil. Os nomes agora eram outros: Sepp Maier, Overath, Breitner, Fisher e Beckenbauer eram os alemães da hora, Cruyiff, Neskens e Krol defendiam a Holanda. Comecei a comprar minhas primeiras edições da Placar neste momento.

Meu tio Martinez, que nunca gostou de futebol, tentava exercer uma certa influência sobre mim e vivia me presenteando com gibis dos mais diversos tipos e títulos.
A primeira história em quadrinhos que li foi uma dos corvos “Faísca e Fumaça” que trabalhavam numa construção e acabam, devido suas trapalhadas, transformando o negócio em uma empresa de demolição. Isso me marcou bastante.
Vendo que eu gostava do que ele me trazia meu tio começou a trazer as revistinhas quase diariamente. Pinduca, Pafúncio, Carequinha, Popeye e Sobrinhos do Capitão eram em preto e branco , capa de papelão e lombada quadrada,  Mickey, Tio Patinhas, Mônica e Cebolinha eram feitos com capa mole e grampeadas no centro em formato brochura. Devorava todas com o mesmo prazer.
Nesta época ainda não lia  os super-heróis que eu nem conhecia. Porém não dava para ficar imune à influencia da televisão e além do futebol noturno, que a TV Cultura exibia nas noites de domingo, assistia religiosamente ao Globo Cor Especial , Vila Sésamo e desenhos da Hanna-Barbera.
Com nove anos de idade ganhei uma camisa de goleiro e uma bola de capotão. As tardes ensolaradas de domingo já tinham um outro significado. Agora a vida se resumia a encontrar pelo menos mais cinco meninos para formarmos dois times e gastar a sola do Kichute.

O hábito de todas as tardes de domingo era mais ou menos assim: riscávamos as duas grandes áreas, a marca do pênalti e o meio de campo com pedaços de tijolos (sempre havia alguma construção no bairro já que eram anos de urbanização acelerada, fruto da grande quantidade de empresas que se instalaram em Santo André) que também serviam como traves.
Novos moleques passaram a integrar os times: os gêmeos Renato e Rogério, Mariano, Marcelino Doriana (apelido ganho porque era muito chorão, logo manteiga derretida), Pedro Baiano, Vassilos, os irmãos Pedrinho, Osmar e João, o japonês Nori (que não sabia jogar) e certamente um ou outro garoto de outra rua.
Um expectador constante era meu pai que muitas vezes assistia aos jogos em pé no portão de casa. Na época eu não sabia, mas na verdade ele olhava o jogo mas não estava nem aí, afinal sempre voltava do bar e ficava “dando um tempo” para que minha mãe não percebesse seu estado de embriaguez.

Numa manhã de 1977, eu estava no quintal de casa e ouvi ele me chamando. Como  sempre me pedia para ir ao bar comprar um maço de Kent ou Arizona e eu achava que era mais uma daquelas tarefas. Mas o caso era mais grave.
Para meu horror o homem que eu sempre via como uma fortaleza,  um pedaço de Deus na Terra, estava tremendo todo. Seu corpo chacoalhava com tanta intensidade que julguei que ele poderia morrer naquele momento e na minha frente. Era uma crise de delirius-tremens, fruto do sucessivo abuso do álcool. Ele foi internado.

Passado alguns dias retornou para casa refeito e de bom humor e vivi semanas de muita felicidade com minha mãe, minha irmã e meu pai, que se recuperava muito bem.
Tamanha era sua mudança que um dia, na verdade um domingo, ele  e seu irmão Tião bolaram uma pescaria e me convidaram para ir com eles. Recusei. O fiz porque não queria perder o jogo que faríamos todo o domingo. Meu pai foi para a represa e eu fiquei ouvindo a Bandeirantes AM no rádio do Fusca Sedan 65, cor de vinho, que ele tinha e não levou para a pescaria neste dia. Pensei: “ Viagem por viagem prefiro viajar com a transmissão do Fiori Gigliotti !”
Mas eu iria me lamentar muito de não ter ido com eles neste dia.

Na manhã seguinte meu pai passou muito mal e foi internado mais uma vez. Parece que desta vez a coisa era mesmo grave pois fiquei o dia todo com a minha avó até que em avançada hora da noite vejo minha mãe chorando e me abraçando dizendo:
- Filho, o pai morreu !
Fiquei parado e não acusei o golpe, eu já vira tantas vezes aquelas cenas de gente chorando ao meu redor e como nunca havia conhecido ninguém que havia morrido achei que fosse algo que tivesse cura, sei lá, uma doença um pouco mais grave ou coisa assim.
Tanto eu não me dei conta do ocorrido, que peguei minha bola e fui até a casa dos gêmeos para mais uma partida de futebol. Fui repreendido por uma vizinha:
- Que absurdo seu pai morto e você brincando aí na rua ! 

Por inclinação religiosa do meu avô a família exigiu que o caixão antes de descer à sepultura ficasse exposto dentro de casa, no caso, na sala de estar, para que a maior parte dos vizinhos e conhecidos pudessem se despedir dele.
Só então frente a visão do corpo do meu pai dei me conta da gravidade da situação e desabei num choro convulsivo. Devo ter chorado tanto que me lembro de uma tia me dando água com açúcar e fechando as janelas de meu quarto pedindo para que eu tentasse dormir. O caixão ficou lá até a manhã do dia seguinte quando decidiram  levá-lo ao cemitério. Não houve velório e ele foi enterrado rapidamente. Só lembro de uma ventania, do céu nublado e de  alguém me dizendo:
- Deixa uma alça (do caixão) para ele segurar pois ele é o filho !
Como havia chorado tudo o que podia já não tinha mais lágrimas mas me recordo de um abraço amistoso do meu vizinho Osmar.

O impacto da morte precoce dele aos 35 anos naquele mês de agosto de 1977, fez com que eu fosse “adotado” pelo meu tio Martinez (aquele dos gibis) e fosse sempre convidado para as brincadeiras pela turma da rua. De certa forma consegui (acho) que esquecer completamente o episódio com muita diversão na rua. Brincávamos e resgatávamos brincadeiras interioranas como palha-ou-chumbo, bota, mão-na-mula, bandeirinha, queimada e claro muito jogo de futebol.
Com 12 anos meu interesse por futebol cresceu muito. Vi o Corinthians ganhar da Ponte Preta e acabar com um jejum de 23 anos sem título, o jogo histórico em que o Basílio fez o tão esperado gol. Só se falava no Timão, foi uma overdose comemorativa, mas parece que o presidente corintiano havia “comprado” um jogador da Ponte Preta, Rui Rei, expulso logo no início da partida. A  suspeita aumentou quando poucos meses depois o Corinthians contratou o jogador...
Em 1977 e 1978 uma febre varreu o bairro: eram os pipas com linha cortante. Tentei uma vez e achei a coisa meio sem graça. Fiquei no futebol de botão. Como estávamos crescendo, as brincadeiras foram se tornando cada vez mais violentas e perigosas. Começamos a soltar balões.
Até ai nada muito grave (se bem que é) não fosse o fato de uns marmanjões irem ao encalço deles quando caiam e distribuírem sopapos em todo mundo.
Gibi do Ziraldo (que eu não lia, aliás nem sabia que existia) perdia feio da nossa rotina. Como ninguém trabalhava e portanto sem dinheiro para nada,a aventura era descolar arame, estopa, papel e querosene para a montagem dos balões que ficavam cada vez maiores. Me lembro de um que fizemos com uns três metros de altura , muito bonito, mas que voou só um pouquinho e logo pegou fogo.

Na escola as coisas também pegavam fogo. Como ainda não me conformava com a perda e com a família diminuída (agora éramos apenas minha mãe, minha irmã e eu), decidi que nunca mais deixaria ninguém me fazer sofrer e revoltado operei uma transformação (embora insconsciente para um menino de apenas 13 anos ) na minha vida. Comecei a brigar na escola e não havia dia que não chegasse em casa rasgado ou ofegante. Lembro que em uma semana briguei três vezes, numa delas  com meu vizinho Mário. Briga de moleque é aquele empurra-empurra e o negócio acabou logo porque o avô dele chegou e pois fim na confusão. Naquele ano tirei notas baixíssimas e pela primera vez repeti de ano.

Mas eu gostava das  aulas de geografia. Certa  vez, mesmo sem o professor pedir, arrumei  cartolina , copiei  o mapa mundi e colori. Não contente comecei a desenhar bandeiras dos países e decorar o nome de suas capitais.
Mas se eu me destacava em geografia o mesmo não ocorria com matemática. Tive uma professora muito paciente, dona Irene, que tentou de toda forma me ajudar, mas eu empacava sempre naquela história de raiz quadrada e equações. Começava a ficar sempre de segunda época, desesperado ía muitas vezes para o quarto de minha mãe, onde até hoje existe um crucifixo de madeira, me ajoelhava e pedia  intercessão divina para conseguir as notas necessárias. O Lord lá em cima nunca falhou.
Na oitava série estudei no período noturno pela primeira vez. Houve um problema burocrático com a pensão que minha mãe recebia pela morte do meu pai e as coisas começaram a ficar ruins. Fui trabalhar com meu tio Marlos, vendedor ambulante, na porta de um posto de saúde. Ele vendia biscoitos de povilho e eu copinhos de água mineral. Fazíamos sucesso e me recordo que em uma semana eu já conseguia trazer dinheiro para casa e até  comprar um tênis novo.
Após este emprego, fui trabalhar como balconista em uma loja de sapatos que pertencia à um armênio sovina e que tinha como característica um ódio declarado por alemães. Uma vez um cliente que não sabia da paranóia do homem (que certamente  deve ter perdido algum parente na Segunda Guerra) perguntou:
- Tem tênis Adidas ?
- Não, mas tenho outros bem bonitos ! respondeu ele.
- Eu quero Adidas ! disse o freguês sem se dar conta do perigo.
Não agüentei muito tempo o salário baixíssimo e o ambiente deprê e me mandei de lá.

- Moça bonita não paga, mas também não leva ! Acho que ouvi esta piada um milhão de vezes. Eu agora trabalhava numa feira livre, barraca de roupas (camisetas, pijamas, toalhas, etc) e aprendi a dobrar camisas muito bem. Tinha que acordar às quatro da madrugada e até que curtia aquilo tudo não fosse a dificuldade em amarrar os estrados no bagageiro de uma Rural com corda de náilon que sempre cortava a minha mão. Também não durei muito naquele trabalho. 

- Chega de bico, o menino tem que arrumar um emprego com registro em carteira e salário fixo ! disse meu tio Martinez.
Minha mãe, que também pensava assim,  teve então uma idéia:
- Por que não ir até a fábrica em que o pai dele trabalhou por 13 anos e conversar com a assistente social ? E foi o que ela fez.
Lá chegando, se apresentou como viúva e pediu ajuda para arrumar um emprego para mim. Imediatamente para surpresa dela, minha e de todos que souberam da história, consegui um emprego em poucos minutos.
Entrava em cena agora o office-boy. Em pouco tempo me destaquei de alguma forma e fui transferido para o arquivo de desenhos e projetos da empresa. Nova função, agora eu me tornava arquivista. Mas esta é uma outra história...
Esta história é uma ficção, qualquer semelhança entre pessoas e situações  com a vida real pode ser mera coincidência.

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