sábado, 27 de maio de 2017

Bob Esponja, O Filme

Localizada nas profundezas do oceano Pacífico, a Fenda do Biquíni é uma cidade subaquática onde vivem seres estranhos e engraçados. De todos eles, a esponja Bob é a mais famosa e controvertida.
Bob Esponja Calça-Quadrada, chamada assim por sua forma geométrica, mora num abacaxi e trabalha na lanchonete do Senhor Sirigueijo, um siri ambicioso que nunca deu folga para seu único funcionário.
Nunca até março de 2004 quando a gravadora Sire Records reuniu um time de estrelas do rock para musicar "Bob Esponja, O Filme", desenho-tributo do personagem marinho mais querido de todos os tempos.
Nessa homenagem em forma de trilha sonora, a cantora canadense Avril Lavigne, o grupo de Oklahoma Flaming Lips, a banda Wilco, a dupla nonsense Ween e até o bêbado Lemmy e seu Motorhead foram chamados para animar a festa de aniversário do Bob.
Executivos da gravadora não tiveram muito trabalho para compor a trilha uma vez que os músicos aceitaram imediatamente escrever, cantar e emprestar canções para sua animação favorita. Todos confessaram ser fãs ardorosos da esponja amarela.
O Senhor Sirigueijo, relutante em dispensar Bob do trabalho, concordou com a festa surpresa desde que o pagamento fosse antecipado. Disse porém, que não emprestaria um centavo para a construção do palco onde os artistas se apresentariam.
Naquela manhã, Patrick, a estrela-do-mar, decorou com balões a lanchonete e avisou Lula Molusco para que fosse até o abacaxi buscar o caracol Gary. Quando voltavam, encontraram a baleia Pérola e a lagosta Puff, todas alinhadas e bonitas. Traziam presentes para o aniversariante.
Mas o que o pessoal da Sire não contava é que a festa tivesse um grande número de bicões. No estacionamento da lanchonete era possível ver o cavalo-marinho do Aquaman, o baleeiro Pequod do capitão Avelar, o Titanic e uma frota de submarinos onde se destacavam o Nautilus do capitão Nemo, o Calypso de Jacques Costeau e o USOS do almirante Nelson, que não contente em aparecer sem ser convidado trouxe a tiracolo toda a tripulação.
O peixinho Nemo, a Pequena Sereia, Tutubarão, Namor, Moby Dick... eram tantos os não convidados que o coitado do Patrick teve que se virar para fritar tanto hambúrger. A galera, impaciente, curtia o som, mas queria mesmo era o rango.
De repente aparece o Bob Esponja:
- Para mim? Olhos marejados...
Feliz e emocionado o crianção chorava de felicidade.
Com todos comemorando despreocupadamente, o Plankton pôde ir até a cozinha roubar a receita secreta do lanche. Não conseguiu. Patrick deixou o lugar um caos e o microorganismo não achou o que tanto buscava.

Resumindo: Foi uma celebração maravilhosa que certamente ficará na memória dos que ali estiveram.
Só não entendi uma coisa:
- Como um esquilo com capacete de astronauta consegue ficar tanto tempo no fundo do mar.

sábado, 20 de maio de 2017

Don McLean - American Pie

Tropeçando num balde deixado no meio do corredor, com calças encharcadas e botas sujas de  barro, ele tentava sorrir. Sorriso nervoso. Uma espécie de defesa contra o olhar reprovador dos funcionários da Capitol Records.
Aquele estranho emporcalhando o chão carregava uma caixa com a fita-rolo do seu segundo álbum e foi confundido pela ascensorista como entregador de pizza. A funcionária errara por pouco. O disco que aquele jovem trazia não era uma calabresa ou quatro-queijos, mas uma deliciosa torta de maçã em formato musical.
Em 1971 Donad McLean  ainda não era um rosto conhecido e tateava o sucesso de maneira tímida. Centenas de telefonemas encerrados de maneira abrupta,  cartas de recomendação devolvidas e lacônicas promessas, nunca efetuadas, de audição de suas demo-tapes formavam os ingredientes de um prato impossível de ser degustado.
O mantra ecoado por diretores artísticos de todas as gravadoras deixava um gosto amargo em sua boca:
- Não precisamos de um novo Dylan, nem de outro Donovan!
Don não desistia. Com o saveiro abastecido singrava as rodovias do país em busca de palcos onde pudesse mandar seu recado. Estrela escolar, autor de poeminhas ecológicos em defesa de florestas, ursos e índios sioux, ele carregava a certeza de poder mudar o mundo tocando violão.
Enquanto o sucesso não aparecia, passava as tardes lendo historinhas da Vovó Donalda e sangrando os dedos nas cordas de aço do violão. Aos 25 anos sentia-se o portador de uma verdade e não entendia o motivo de ninguém querer ouvi-la. Tinha uma missão, seria um novo Buddy Holly e faria deste desejo a inspiração, o gás que cozinharia suas pretensiosas ideias musicais.
Um ano antes, havia gravado de maneira rústica seu primeiro álbum, "Tapestry", uma elegia ao pintor Vincent Van Gogh onde as pinceladas rudes do holandês foram trocadas por canções ásperas, pouco requintadas, que serviram de passaporte para o mundo artístico. O disco saiu e não aconteceu. A carreira de McLean foi para a geladeira.
Um dia o telefone tocou:
- Don, venha até a gravadora para conversarmos!
O plano era simples: McLean deveria apresentar-se ao vivo numa rádio da Costa Oeste para divulgar seu trabalho. Tudo acertado. Era chegar, apresentar o cartão da gravadora e entregar a fita.
Um pit-stop no Texaco para comprar pizzas, refrigerantes, goma de mascar e não seria tão difícil cruzar o país. Seria até divertido. No toca-fitas "Sgt. Peppers" e "Highway 61 Revisited" como companheiros de viagem.

A noite caiu e a chuva também. Um boeing voando baixo no horizonte trouxe lembranças de fevereiro de 1959, quando desamarrou a pilha de jornais com a manchete da morte de Buddy Holly. Em cada casa que entregou o tablóide uma facada no coração. Não poderia mais fazer aquilo. Decidiu aposentar a bicicleta e pedir demissão.  A decisão fez com que passasse as noites ouvindo country music, descascando maçãs e preparando uma iguaria sonora nunca antes provada por ninguém.
Tchau, tchau "American Pie", dirigia o Chevy imaginando como seria o promo-video que o lançaria ao estrelato. No caminho uma pausa forçada. Uma ponte havia ruído e era necessário um retorno enorme. Decidiu não deixar este pequeno problema abalá-lo. De maneira imprudente tirou uma garrafa de uísque do porta-malas e bebeu com menores à beira da estrada. Ouvia histórias de valentia e proeza daqueles mini homens e registrava mentalmente tudo aquilo com a certeza que dariam ótimas canções.
Alcoolizado cantarolava:
- "Este será o dia que eu morrerei". Referia-se a Holly. Quem ouvia não atinava.
Antes de partir deixou uma luva de beisebol autografada:
- Um dia serei famoso e você terá um troféu.  Disse sorrindo.
Acelerando o saveiro ultrapassou a velocidade máxima. O ronco do motor abafado pelas gaitas de "Like a Rolling Stone". Don só acreditava em duas coisas: Na Bíblia e no rock'n'roll. Precisava correr, o tempo parado certamente cobraria seu preço.
Refletia:
- A música poderia salvar sua alma? Aprenderia a dançar antes do juízo final? E se o passo do adolescente desajeitado até o homem consciente tivesse demorado tempo demais?
Parou de pensar nisso quando o som das cítaras de "Within You Without You", Harrison enlouquecido, começou a ensurdecê-lo.
- Nada de Donovan por aqui! Malditos...
A madrugada veio e o verde musgo dos eucaliptos também. A visão encheu-o de esperança. Sua aparição desta vez seria triunfal.

Caminhando altivo, queixo levantado, casaco grená, lenço e chapéu de cowboy na cabeça, Don era o próprio Clint Eastwood em "O Cavaleiro Solitário". Arrancou suspiros e risadinhas das secretárias enquanto invadia os corredores da rádio KATM carregando mais uma vez a caixa com a fita-rolo do seu segundo álbum. Os DJs, reduzidos à condição de Gansolinos famintos, provaram e aprovaram aquelas canções.

No dia seguinte o assunto na KATM era o charmoso "funcionário da confeitaria" que havia deixado uma torta de maçã na mesa do diretor...

sábado, 13 de maio de 2017

Roberto Carlos (1981)

- Senhorita Miriam, mande o paciente entrar!
- Bom dia. Deite no divã enquanto eu localizo sua ficha. Deixe-me ver...Achei. Roberto Carlos Braga , 40 anos, viúvo, dois filhos... Confere?
- Sim doutor.
- Eu só pediria que não fumasse no consultório.
- É o hábito. O cachimbo está apagado.
- Pois bem, fale sobre você.
- Tenho sonhado muito. Nos meus sonhos aparecem mulheres, Jesus, baleias, não sei bem o que isso significa.
- Continue por favor...
- Bem, num destes sonhos eu me via iluminado sob a luz das estrelas, aquecido nos raios de sol e refrescado pela chuva que caia na minha cabeça. De cima de uma rocha eu contemplava o mar  enchendo os pulmões, respirando o ar. No sonho, eu tinha a informação que Deus estava para chegar e era desnecessário lutar contra os fenômenos da natureza. Minha consciência dizia para não tentar me esconder nem tampouco me enganar. Ainda no sonho, eu devia encontrar algo, bem depressa e me preparar para um encontro místico-celestial com o brilho dessa luz, que depois soube que se chamava Jesus.
- E soube como?
- Não sei ao certo. Uma espécie de ternura, uma mágica simples. Para responder isso só evocando outro sonho: Uma jovem de mansinho se aconchegava nos meus braços e falava de amor e carinho. Ela se enroscava docemente em meu braço e descobria meus segredos. Ela me olhava de maneira tão profunda e me beijava com boca macia...
- E você como reagiu?
- Eu estava encantado. Como alguém na plateia vendo um espetáculo de magia!
- Magia?
- Sim, uma simples mágica.
- Prossiga.
- Eu estou com a jovem no quarto, nossas roupas espalhadas pelo chão e era tão grande o amor que a gente fazia que tudo parava lá do lado de fora.
- Como assim?
- Tudo estava meio lento ou congelado. As pessoas começaram a sorrir, passarinhos faziam festa nos seus ninhos, o carteiro olhava para o céu esquecendo a carta urgente, as buzinas dos carros silenciavam. Era tão grande o amor que a gente fazia...
- Como se até o absurdo pudesse ser real né?
- Exatamente doutor. Uma doce loucura. Eu dissipava, saia do meu corpo e me transformava em batom, sabonete, toalha, travesseiro, o importante era estar colado àquela mulher. Sem notar vi parado no canto do quarto um café da manhã suntuoso que provamos ainda na cama. A comida, a bebida, tudo na justa medida.
- Interessante... E então?
- Então eu me via vivendo um momento lindo, sentindo emoções e lembranças vividas, momentos que eu não esquecia. Eu chorava, chorava de emoção. Eu me via ali vivendo aquele momento lindo em  paz com a vida, com uma fé me fazendo otimista demais. No sonho eu chorava.
- Se chorava ou se sorria o importante é que no sonho você vivia emoções.
- Isso.
- Hummm...
- É grave doutor?
- Meu caro não há problema algum. O senhor está muito bem.
- Estou?
- Sim. O senhor sofre de uma doença chamada Amor, mas isso não é fatal. Em alguns casos pode até fazer bem à saúde.
- Terei que tomar algum remédio?
- Recomendo apenas um banho gelado quando esses sonhos forem constantes.
- OK doutor.
- Ah, senhor Roberto, poderia me dar um autógrafo?
- Claro doutor. Assino onde?
- Senhorita Miriam traga aquele disco que compramos para a dona Neusa.

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Verão, início dos anos 90. Derretendo no sofá da sala do Marco, eu, ele e o Fábio assistíamos aborrecidamente o Top 10 da MTV com os mesmos videoclipes e volume baixo para não ouvir a voz da Astrid Fontenelle. Desviando o olhar do tubo da televisão, avisto um montinho de LPs da coleção da dona Neusa repousando quietinho na estante. Começo a mexer nos álbuns até que localizo o Roberto Carlos 1981. Mostro para o Fábio que começa a rir, quase gargalhar.
- Olha isso! Começou a ler a dedicatória na contracapa do vinil: "O único homem que consegue mexer com a gente".
Rimos, porém algo de profético ocorreu naquele dia. "O único homem que consegue mexer com a gente" certamente se referia ao cantor, o único homem que conseguia nos emocionar. Hoje o Fábio é PM. Dos mais brilhantes e temidos. Ninguém consegue mexer com ele.
Acho que só o Roberto.

sexta-feira, 5 de maio de 2017

Lou Reed - Metal Machine Music

Segundo andar de um prédio na Avenida São Luís, centro da cidade. Toda vestida de preto, bota salto agulha, peitos saltando do bustiê de couro e segurando um chicotinho, estranho o visual da dentista.
- Pode entrar. Vejo que está com o rosto inchado!
Rosto inchado era um eufemismo. Eu parecia estar era com uma bola de tênis no lado direito da boca.
- Foi uma maçã do amor que eu comi ! Disse economizando as palavras para não sentir a dor horrível.
Ela pediu para que eu sentasse, regulou a altura da cadeira, empurrou uma mesinha cheia de martelinhos, pinças, agulhas e ajustou aquela luz forte que iluminou toda a minha cabeça.
- Abra a boca bem grande ! Disse enquanto um espelhinho percorria a cavidade entre lábios e faringe.
- Estou vendo umas cáries. Acho que pode ser problema de canal! Respondi dizendo que fizesse o que fosse preciso desde que cessasse aquela dor horrível. Ela pegou uma prótese e com uma caneta foi riscando os dentes na moldura. Explicou que cada marcação era um local bichado na minha arcada dentária.
Perguntou se eu autorizava o raio-X e o início da tratamento. 
- Manda ver! Concordei.
Ela mexeu novamente na altura da cadeira. Desta vez, minha cabeça ficou na altura do seu colo enquanto minhas pernas, esticadas para cima. Indagou se eu estava bem instalado. 
- Doutora, tenho problemas com falta de ar pode ligar o ar condicionado ?
Ela não apenas apertou uns botões como posicionou um ventilador enorme atrás da cadeira. Eu olhava aqueles zíperes e os peitões parecendo pular para fora e pensava o 
motivo dela não usar o avental branco como todo mundo.
- Quer que eu coloque uma musiquinha para relaxar? Às vezes ajuda! Falou sorrindo.
- Tem uns CDs que meu filho deixou aqui. Deixe ver...
-Tem Skank, Legião, Lou Reed e Faith No More. Qual você quer?
-Toca o Lou Reed ! Respondi. Torcia para ser o "Transformer" ou "Coney Island Baby".
Ela apagou a luz, saiu da sala e disse que tiraria o tal do raio X. Senti olhos arderem e um peso no peito como se estivesse tomando um soco do Mike Tyson. Esperei pelo Lou Reed, ele parecia atrasado.
Com sorriso sádico a dentista cantou nos meus ouvidos:
- Relaxa que a anestesia é só uma picadinha...
Urrei. A dor era tanta que comecei a delirar. Sem avisar, o motorzinho foi raspando minha gengiva, invadindo raízes e furando meus dentes. Com a maquinaria abafando o som do Lou Reed só restava imaginar as músicas que eu não ouvia. 
Torci para uma pausa, pediria para que aumentasse o som, mas ela não parou. Apanhei mais que Jesus em filme de Mel Gibson e nada do guitarrista do Velvet cantando para mim. 
A broca me ensurdecia e, já lobotomizado por tanta dor, desci a um Inferno onde não havia Beatriz. Numa hora estava de olhos vendados, amarrado diante um pelotão de fuzilamento, pouco depois me vi deitado numa sessão de acupuntura onde todas as agulhas eram seringas de heroína. Mas nada superou o terror de passear no lado selvagem da noite em companhia do Ronaldo Fenômeno e ser cercado por um trio de travestis pauzudos querendo me currar.
Desesperado, procurei cantarolar mentalmente a introdução de "Pale Blue Eyes", mas de nada adiantava. A remoção do tecido infectado me fazia chorar e tudo que eu pedia era um conforto auditivo do maldito CD player que, ou não havia sido ligado ou estava num volume muito baixo.
Devo ter ficado mais ou menos uma hora sendo cortado, raspado, apertado e violado. Num momento que decidi abrir os olhos fui cegado por uma luz branca.Tentei balbuciar algo, mas a doutora colocou uma borracha entre os lábios para poder prospectar melhor aquele cânion de tártaros e inflamações. Rezei para que Deus tivesse piedade.

64 minutos depois, finalmente o ronco do motor diminuiu e pude ver melhor onde estava. 
- Prontinho meu querido. Acabou! Disse a cirurgiã com os olhos injetados e sorriso do Coringa.
Fui me recompondo aos poucos.
- Doeu, mas agora está tudo bem! Falei aliviado pelo fim da sessão tortura.
-Por quê você não tocou o CD? Reclamei.
-Mas eu toquei você não ouviu ?
-Não tocou não, eu conheço a voz do Reed e não ouvi nada. Só o barulho infernal do motorzinho!
Ajeitando o rabo-de-cavalo e mirando as unhas negras ela cantarolou em voz infantil:
- O motorzinho que você ouviu era o disco! Um album instrumentaaal! Mastigava as 
palavras saboreando meu espanto.
- Instrumental? Não creio...
Ela mostrou o CD e eu folheei o encarte. 
-Ah, o tal "Metal Machine Music"! Que eu nunca havia ouvido e todos consideravam, 
com razão, o pior disco da história.
- Lou Reed... Seu filho da puta!
Antes de partir ela me informou que eu teria que retornar para preencher com platina algumas obturações.
Só tive  tempo de responder:
- OK doutora! Mas da próxima vez eu trago o álbum!