Lembrança do banco escolar, transição tensa da
infância para a adolescência, necessidade de afirmação e exibição de coragem
são alguns temas que o escritor angolano Ondjaki elenca no conto “Nós Choramos pelo Cão Tinhoso”.
O
cachorro que dá título à história não existe. Vive como personagem literário e
indica a preocupação do autor em nunca delimitar fronteiras entre o real e o
onírico.
Sim, o
Cão Tinhoso, existe. Como assim ? pergunta o leitor desconfiado pois afirmei
linhas acima que ele não era real. Explico:
O Cão
Tinhoso está vivo e forte. Aquele animal coberto de feridas e abatido por tiros
de espingarda é verídico, atual. Vive em cada suspiro, em cada lágrima, que
refreada, não ousa correr na face da meninada.
Obrigados
por uma professora involuntariamente masoquista a efetuar leitura a classe vai
reanimando o bicho outrora abatido.
O texto,
no formato de monólogo interior, apresenta Jacó, o narrador, ponderando sobre a
crueldade perpetrada por um grupo de meninos que recebe a ordem de abater o
animal ferido e eles não se furtam em fazê-lo.
Já a
leitura, tensa, ritualística, em voz alta, parece uma reedição da morte do cão.
Cada palavra é um tiro, cada pontuação uma agressão. Encontrei aí uma espécie
de tributo ao “Apanhador do Campo de Centeio” do norte-americano J.D.Salinger:
Jacó é Holden Caulfield e o Cão Tinhoso , os meninos inocentes brincando
perigosamente próximo do barranco.
“Levantei-me e toda turma estava também com
os olhos pendurados em mim...”. Essa passagem tira o narrador do mundo real
e o transfere para a companhia do cachorro.
Agora não
é mais possível perceber diferenças entre real e imaginário. O poder do texto
nivela tudo, a força da história, seu caráter emotivo, desnuda a inocência dos
alunos. Eles ainda não são homens, devem se comportar como tal e esse impasse
vai vitaminando o Cão Tinhoso.
Morto na
história, vivo na mente dos alunos, o que normalmente era uma lição de casa
virou lição de vida: a responsabilidade de cada um diante da fragilidade de inocentes e animais.