segunda-feira, 24 de novembro de 2014


 O personagem D.João V no livro "Memorial do Convento", de José Saramago

Encerrada a leitura de “Memorial do Convento” adormeci com o livro nos braços.  Foi então que me vi em pleno campo de batalha, ou do que havia restado dela, em companhia do soldado Baltasar, também conhecido como Sete-Sóis”.
     Procurávamos a mão decepada dele, mas percebemos a dificuldade que seria  encontrá-la em meio àquela carnificina toda onde se avolumavam cadáveres mutilados, outros queimados e muitos esmagados. A tarefa não era nada fácil. Foi no momento em que julgava que meu guia ficaria mesmo maneta para sempre naquele mundo de Morfeu que vimos a passarola.
     A engenhoca era um delírio materializado pelo padre Bartolomeu de Gusmão que invejoso de Ícaro também queria se aproximar do sol. Se o personagem mitológico havia optado por asas de cera, o padre português se valeu de seus conhecimentos científicos e consumiu uma vida para que seu invento, um pássaro mecânico, conhecido como passarola, estivesse pronto e em condições de vôo.
    Subimos, eu e Baltasar, na máquina e empreendemos um vôo curto o suficiente para localizarmos a árvore, ou o que havia sobrado dela. Meu guia havia confessado a existência de uma no cenário de sua desgraça.
    Pensei que a humanidade deveria mesmo estar perdida e só uma misericórdia celeste restauraria a ordem, harmonia e esperança entre os homens. Que cena dantesca... aquela quantidade de homens mortos.
   Por falar em homens, isso era tudo o que desejava o rei D.João V. Homens. Mas homens gerados por uma rainha que abrigasse o sêmen real e transformasse o líquido do monarca num herdeiro do trono lusitano.
   Tentativas não faltaram, o rei parecia estéril e filhos só conseguia  fora do casamento. Bastardos não poderiam reivindicar a coroa e isso o atormentava.
Rei de Portugal desde 1707, D.João V, filho de Pedro II e Maria Sofia, adquiriu o epíteto de Magnânimo devido à promoção de obras espetaculares como o Convento de Mafra.
     Após casamento e meses de insucesso em fazer a rainha D.Maria Ana da Áustria em parir um sucessor, o rei promete que se a barriga da soberana crescer ele construiria o convento e que o mesmo seria tão  grandioso como a generosidade divina.
    O rei, em que pese ser amante dos prazeres humanos, é devoto fanático e atribui sucessos e fracassos à intercessão divina que parece  jogar xadrez com o destino. Mas o necessário, ou quase, havia sido feito: submete toda a nação ao cumprimento da promessa pessoal, a construção do convento. Preço nenhum deveria ser alto o suficiente e para o sucesso de tal empreitada, que teria sua realização garantida à base de punhos decepados e bugigangas voadoras, nada poderia deter tamanho desejo. Para o absolutista a palavra real era a manifestação da vontade de Deus.
     D.João quer um herdeiro, mas não nutre sentimento amoroso algum pela rainha. A maneira desinteressada e ritualística com que trata o ato sexual com a esposa beira o animalesco.  Ao rei todos os pecados se perdoam e a megalomania do líder é desvendada quando a corte é revestida de luxo enquanto  um exército de portugueses famintos lutam por um pedaço de pão.
     Outras características da personalidade real é a curiosidade e o senso estético. No primeiro caso ela se revela quando debruça demoradamente em tentar entender as invenções do padre Bartolomeu. Já a apreciação por coisas belas se manifesta quando convida o compositor Domenico Scarlatti a permanecer em Portugal.
     Se essa vida de formalidades demoradamente encenadas se faz necessária para a manutenção da monarquia, mesmo que em forma de caricatural, ela tem seu preço: mais que erigir um convento o que D.João quer é alforria de seus pecados mundanos e a garantia de um mausoléu onde após sua morte o passaporte celestial estaria garantido. Esse desejo de imortalidade é saciado através da sagração do convento no dia do seu quadragésimo aniversário.
     Mas a megalomania real não se resume apenas ao Convento de Mafra. Tem o rei um passatempo que é a construção de uma réplica da Basílica de São Pedro de Roma. Essas obsessões arquitetônicas revelam um homem egocêntrico, vaidoso e mitômano. Sonho e desejo, para D.João V, se misturam com realidade e se está não é a satisfatória troquemo-la por divagação onírica.
     Para ser um rei amado pelos súditos, não hesitou em determinado momento lançar moedas de ouro ao povo num de seus cortejos reais. Também é contraditório. De um lado faz pouco caso da Inquisição, do outro tem várias relações adúlteras e mundanas.
     Poderia ainda discorrer sobre a origem do dinheiro que levanta e destrói coisas belas como só possível devido ao ciclo de ouro e diamantes vindos do Brasil mas nesse instante fui surpreendido pelo sol das 9 da manhã já iluminando o quarto todo.
     Não recuperei a mão para Baltasar e nem empreendi novo voo com a passarola. Fiquei por outro lado imaginando os esforços de pesquisa e construção dos personagens que o escritor português José Saramago teve para tecer esse belo romance histórico.