O personagem D.João V no livro "Memorial do Convento", de José Saramago
Encerrada a leitura de “Memorial do Convento” adormeci com o livro nos braços. Foi então que me vi em pleno campo de batalha, ou do que havia restado dela, em companhia do soldado Baltasar, também conhecido como Sete-Sóis”.
Encerrada a leitura de “Memorial do Convento” adormeci com o livro nos braços. Foi então que me vi em pleno campo de batalha, ou do que havia restado dela, em companhia do soldado Baltasar, também conhecido como Sete-Sóis”.
Procurávamos a mão decepada dele, mas
percebemos a dificuldade que seria encontrá-la
em meio àquela carnificina toda onde se avolumavam cadáveres mutilados, outros
queimados e muitos esmagados. A tarefa não era nada fácil. Foi no momento em
que julgava que meu guia ficaria mesmo maneta para sempre naquele mundo de
Morfeu que vimos a passarola.
A
engenhoca era um delírio materializado pelo padre Bartolomeu de Gusmão que
invejoso de Ícaro também queria se aproximar do sol. Se o personagem mitológico
havia optado por asas de cera, o padre português se valeu de seus conhecimentos
científicos e consumiu uma vida para que seu invento, um pássaro mecânico,
conhecido como passarola, estivesse pronto e em condições de vôo.
Subimos, eu e Baltasar, na máquina e
empreendemos um vôo curto o suficiente para localizarmos a árvore, ou o que
havia sobrado dela. Meu guia havia confessado a existência de uma no cenário de
sua desgraça.
Pensei
que a humanidade deveria mesmo estar perdida e só uma misericórdia celeste
restauraria a ordem, harmonia e esperança entre os homens. Que cena dantesca... aquela quantidade de homens mortos.
Por
falar em homens, isso era tudo o que desejava o rei D.João V. Homens. Mas
homens gerados por uma rainha que abrigasse o sêmen real e transformasse o
líquido do monarca num herdeiro do trono lusitano.
Tentativas não faltaram, o rei parecia
estéril e filhos só conseguia fora do
casamento. Bastardos não poderiam reivindicar a coroa e isso o atormentava.
Rei de Portugal desde 1707,
D.João V, filho de Pedro II e Maria Sofia, adquiriu o epíteto de Magnânimo
devido à promoção de obras espetaculares como o Convento de Mafra.
Após casamento e meses de insucesso em
fazer a rainha D.Maria Ana da Áustria em parir um sucessor, o rei promete que
se a barriga da soberana crescer ele construiria o convento e que o mesmo seria
tão grandioso como a generosidade
divina.
O
rei, em que pese ser amante dos prazeres humanos, é devoto fanático e atribui
sucessos e fracassos à intercessão divina que parece jogar xadrez com o destino. Mas o necessário,
ou quase, havia sido feito: submete toda a nação ao cumprimento da promessa
pessoal, a construção do convento. Preço nenhum deveria ser alto o suficiente e
para o sucesso de tal empreitada, que teria sua realização garantida à base de
punhos decepados e bugigangas voadoras, nada poderia deter tamanho desejo. Para
o absolutista a palavra real era a manifestação da vontade de Deus.
D.João
quer um herdeiro, mas não nutre sentimento amoroso algum pela rainha. A maneira
desinteressada e ritualística com que trata o ato sexual com a esposa beira o
animalesco. Ao rei todos os pecados se
perdoam e a megalomania do líder é desvendada quando a corte é revestida de
luxo enquanto um exército de portugueses
famintos lutam por um pedaço de pão.
Outras características da personalidade
real é a curiosidade e o senso estético. No primeiro caso ela se revela quando
debruça demoradamente em tentar entender as invenções do padre Bartolomeu. Já a
apreciação por coisas belas se manifesta quando convida o compositor Domenico
Scarlatti a permanecer em Portugal.
Se essa vida de formalidades demoradamente
encenadas se faz necessária para a manutenção da monarquia, mesmo que em forma
de caricatural, ela tem seu preço: mais que erigir um convento o que D.João
quer é alforria de seus pecados mundanos e a garantia de um mausoléu onde após
sua morte o passaporte celestial estaria garantido. Esse desejo de imortalidade
é saciado através da sagração do convento no dia do seu quadragésimo
aniversário.
Mas a megalomania real não se resume
apenas ao Convento de Mafra. Tem o rei um passatempo que é a construção de uma
réplica da Basílica de São Pedro de Roma. Essas obsessões arquitetônicas revelam
um homem egocêntrico, vaidoso e mitômano. Sonho e desejo, para D.João V, se
misturam com realidade e se está não é a satisfatória troquemo-la por divagação
onírica.
Para ser um rei amado pelos súditos, não
hesitou em determinado momento lançar moedas de ouro ao povo num de seus
cortejos reais. Também é contraditório. De um lado faz pouco caso da
Inquisição, do outro tem várias relações adúlteras e mundanas.
Poderia ainda discorrer sobre a origem do
dinheiro que levanta e destrói coisas belas como só possível devido ao ciclo de
ouro e diamantes vindos do Brasil mas nesse instante fui surpreendido pelo sol
das 9 da manhã já iluminando o quarto todo.
Não recuperei a mão para Baltasar e nem
empreendi novo voo com a passarola. Fiquei por outro lado imaginando os
esforços de pesquisa e construção dos personagens que o escritor português José
Saramago teve para tecer esse belo romance histórico.