Treinando Confusões
Na avenida a cena era mais ou menos a esperada. Pessoas caminhando apressadamente, olhares fixos para ponto algum e um desfile de gravatinhas, pastinhas, mochilas e outros apetrechos de "cunho profissional". O Tadeu não estava nessa. Aliás o Tadeu não estava nunca. Quem o via não o encontrava, quem perguntava não
obtia resposta e quem o desafiava ou provocava com algum tipo de galhofa era obrigado a voltar com o presente da sua ofensa. Tadeu era um budista acidental. Não sabia o que era koan nem meditação, mas exalava profundidade e calma por todos os poros.
Quem o visse naquele dia atravessando tranquilamente os cruzamentos da grande cidade talvez só prestasse atenção nos incríveis um metro e noventa e oito distribuidos no esqueleto do Tadeu. Era um gigante discreto, até o ponto em que alguém daquela altura conseguia passar despercebido.
Seus passos eram tortos, quase uma dança. Seu pé esquerdo havia sido esmagado, na infância, por uma carroça, mas a imperfeição física nunca, jamais em tempo algum, foi um fardo para ele. Se sentiu especial a partir do episódio que atenuava a culpa pela curiosidade e intimidação que seu tamanho causava nas pessoas. Pensava que o acidente era um sinal divino para que nunca usasse o atributo físico para qualquer tipo de mal.
- Você nasceu de novo Tadeu ! diziam parentes, padrinhos, vizinhos e moradores da cidade natal. Tanto repetiram aquela frase que ele já se julgava um sortudo pela desgraça na infância remota. Bem, nem tão remota. Tadeu tinha pouco mais de 30 anos, mas aparentava bem menos. No rosto a bocona enorme estampava um sorriso como uma tatuagem no braço de um marinheiro. Apesar de tudo, Tadeu sempre a mantinha fechada. Tadeu falava pouco, só o necessário, mas se diferenciava de outros calados e carrancudos do dia-a-dia.
Quando ainda bebê, os pais de Tadeu o deixaram com o avô materno e, apesar das promessas, nunca mais voltaram para busca-lo.Esse episódio de certa forma traumatizou a criança e o idoso. Os anos passaram e Tadeu nunca perguntou nada para o avô a ponto de tal comportamento evoluir para uma espécie de pacto: nunca falariam sobre aquilo.
Tadeu encontrou Ariovaldo, um colega de infância, que estava trabalhando num circo. Tanto Ariovaldo falou, sobre as maravilhas daquele mundo, que despertou uma vontade incontrolável no Tadeu em conhecer tudo aquilo. Rapidamente combinaram de ir até o local. Caminhavam, despreocupadamente como era o estilo do Tadeu, até
o ponto que foi possível ver aquele conjunto de lonas e toldos de cores indefinidas. O coração do Tadeu deu um pulo. Era exatamente aquilo que ele buscava a vida toda e nem sabia direito o que era. Viu palhaços se maquiando, um mágico de fraque e cartola, um rapaz recortando cartazes e...o principal: um trio de elefantes !
- Essas são Berenice, Eunice e Lenice ! Ariovaldo apresentava as elefantas que se igualavam em tamanho, mas possuiam tons de cinza diferentes.
- Todas estrelas do nosso Gran Circo ! gritou com empolgação sincera o colega do Tadeu. As elefantas pareciam nem se importar quando ele parou e tentou tocar a orelha da Lenice, a mais próxima do Tadeu.
- Vieram da África ! respondeu um homem baixinho e calvo para a pergunta que o Tadeu ainda nem fizera. Era o sr.Boss, o dono do circo, que simpatizou com a figura do Tadeu e pensou que podia usa-lo como palhaço em algum espetáculo. Naquele momento o Sr.Boss não viu o Tadeu como um visitante curioso, mas como atração bizarra, um engolidor de espadas, faquir ou domador de leões que aparecera para abrilhantar seu negócio.
Caminharam mais um pouco e Tadeu viu um quarto elefante separado dos demais. Era Alice, a elefanta esquecida. Alice tinha a cor bege e se diferenciava de suas companheiras. Era levemente maior e mais orelhuda. O sr.Boss vendo o fascinio que os animais causavam no encantado rapaz, perguntou se ele não gostaria de cuidar dela.
Um grande sorriso pareceu rasgar o rosto do Tadeu que rapidamente aceitou o convite. Curioso, perguntou se trataria apenas da Alice ou de todos os outros elefantes.
- Meu problema é apenas com essa elefanta ! disse apontando para ela e explicou que os outros animais já haviam aprendido rapidamente o que em anos a Alice não conseguia. O fato é que ela, a elefanta esquecida, virou mesmo um incômodo; não participava dos espetáculos por pura incompetência e ainda dependia de alguém para alimenta-la, banha-la e outros cuidados que um bicho daquele tamanho necessitava.
- Alice onde está sua orelha ! perguntou Pimpão, um palhaço que passava pelo local. A elefanta ergueu a pata.
- Alice onde está sua pata ! se divertia o palhaço, naquele momento fazendo uma cruel palhaçada, rindo do animal que começava a balançar o rabo. O sr.Boss deu um suspiro de pura decepção e confidenciou ao Tadeu que aquele paquiderme não tinha mais jeito. Tadeu entendeu aquilo como um desafio e decidiu adiar todos seus, poucos, afazeres diários para não apenas ir morar naquele circo mas também "recuperar" sua mais recente amiga.
"Eu, sr.Big High Boss, dono do Gran Circo, contrato o sr. Tadeu, brasileiro, 30 anos, em caráter provisório para a função de tratador de elefante e asseguro que o mesmo garantiu estar em perfeito juízo mental quando aceitou esse trabalho e ainda se comprometeu a não deixar de fazer esse e porventura outros afazeres que o Gran Circo necessitar. Em troca, na condição de proprietário e chefe da atração, concedo ao trabalhador um salário mínimo, comida e moradia. Lembrando que esse contrato pode ser encerrado a qualquer momento sem maiores explicações por qualquer das partes envolvidas".
São Paulo, 20 de janeiro de 2005.
A "revelação" que Tadeu obteve naquele dia despertou nele um fascínio por zoologia que o fez estudar a vida daqueles animais. Começou como todo nerd obcecado começa: uma coleção de action figures (espécies de bonequinhos de brinquedo). Tadeu tinha três horas livres durante a tarde e usava esse tempo para varrer a cidade em busca de memorabilia elefantística, sua nova paixão. Em pouco tempo juntou uma impressionante coleção de livros, posteres, brinquedos e jogos alusivos ao mamífero que agora era sua própria vida. De fato as madrugadas do Tadeu nunca mais foram insônes. Agora ele viajava para África e Asia, encontrava o Babar, se via passeando pela floresta da Turma da Mata, dialogava com o Jotalhão e, quando o perigo parecia eminente, voava com o Dumbo ou pilotava um bug veloz abastecido pelo elefantinho da Shell. Sua carteira de motorista tinha um jogo do bicho com aposta no grupo doze, vestia uma camiseta com estampa do deus hindu Ganesh, comprava a Playboy porque ficou sabendo que a Luma de Oliveira havia sido clicada sentada na tromba de um elefante. Quando acordava, a cada manhã, Tadeu tinha a certeza de que era um homem feliz. Cada vez mais feliz.
No seu primeiro dia de trabalho a ansiedade era tanta que confundiu a posição dos elefantes. Quando encontrou um grupo de três trapezistas perguntou sobre a jaula da Alice. Foi recepcionado com sonoras gargalhadas.
- Siga nessa direção, depois vire à direita depois à esquerda ! disse um daqueles homens sem dar muita atenção àquele maluco que viera "treinar" a elefanta esquecida.
Tadeu tinha uma certa inteligência emocional difícil de explicar com palavras, decidiu que a elefanta precisava de espaço e sossego para aprender os números sem a pressão dos funcionários do circo que certamente não acreditavam nela. Difícil seria convencer o sr.Boss e o pior, transportar o bicho. Tadeu estava tão empolgado que não havia se dado conta de que nunca treinara bicho algum, nem cachorros, e que o desafio naquele caso era proporcional ao tamanho da Alice.
Aos solavancos trouxe o mamífero para um pequeno descampado atrás das lonas e sorriu quando viu três moleques escalando um muro para ver Alice de perto.
- Veja, eles gostam de você ! disse Tadeu, feliz ao notar que ela balançava o rabo. Os meninos se aproximaram e Tadeu decidiu impressionar os meninos:
- Alice onde está seu olho ? Logo a tromba do bicho tocava uma das orelhas. Gargalhadas gerais; a criançada achava Alice divertida.
A elefanta nervosa com a inesperada visita travou e se recusou até a obedecer as ordens do Tadeu. Um olhar reprovador calou as piadinhas das crianças, ele ainda aumentou a culpa dos meninos quando disse que suas risadas haviam ferido os sentimentos do animal.
Dizem que os elefantes nunca esquecem...Mas não era assim com Alice. Ela era um caso diferente, nunca se lembrava de nada.
obtia resposta e quem o desafiava ou provocava com algum tipo de galhofa era obrigado a voltar com o presente da sua ofensa. Tadeu era um budista acidental. Não sabia o que era koan nem meditação, mas exalava profundidade e calma por todos os poros.
Quem o visse naquele dia atravessando tranquilamente os cruzamentos da grande cidade talvez só prestasse atenção nos incríveis um metro e noventa e oito distribuidos no esqueleto do Tadeu. Era um gigante discreto, até o ponto em que alguém daquela altura conseguia passar despercebido.
Seus passos eram tortos, quase uma dança. Seu pé esquerdo havia sido esmagado, na infância, por uma carroça, mas a imperfeição física nunca, jamais em tempo algum, foi um fardo para ele. Se sentiu especial a partir do episódio que atenuava a culpa pela curiosidade e intimidação que seu tamanho causava nas pessoas. Pensava que o acidente era um sinal divino para que nunca usasse o atributo físico para qualquer tipo de mal.
- Você nasceu de novo Tadeu ! diziam parentes, padrinhos, vizinhos e moradores da cidade natal. Tanto repetiram aquela frase que ele já se julgava um sortudo pela desgraça na infância remota. Bem, nem tão remota. Tadeu tinha pouco mais de 30 anos, mas aparentava bem menos. No rosto a bocona enorme estampava um sorriso como uma tatuagem no braço de um marinheiro. Apesar de tudo, Tadeu sempre a mantinha fechada. Tadeu falava pouco, só o necessário, mas se diferenciava de outros calados e carrancudos do dia-a-dia.
Quando ainda bebê, os pais de Tadeu o deixaram com o avô materno e, apesar das promessas, nunca mais voltaram para busca-lo.Esse episódio de certa forma traumatizou a criança e o idoso. Os anos passaram e Tadeu nunca perguntou nada para o avô a ponto de tal comportamento evoluir para uma espécie de pacto: nunca falariam sobre aquilo.
Tadeu encontrou Ariovaldo, um colega de infância, que estava trabalhando num circo. Tanto Ariovaldo falou, sobre as maravilhas daquele mundo, que despertou uma vontade incontrolável no Tadeu em conhecer tudo aquilo. Rapidamente combinaram de ir até o local. Caminhavam, despreocupadamente como era o estilo do Tadeu, até
o ponto que foi possível ver aquele conjunto de lonas e toldos de cores indefinidas. O coração do Tadeu deu um pulo. Era exatamente aquilo que ele buscava a vida toda e nem sabia direito o que era. Viu palhaços se maquiando, um mágico de fraque e cartola, um rapaz recortando cartazes e...o principal: um trio de elefantes !
- Essas são Berenice, Eunice e Lenice ! Ariovaldo apresentava as elefantas que se igualavam em tamanho, mas possuiam tons de cinza diferentes.
- Todas estrelas do nosso Gran Circo ! gritou com empolgação sincera o colega do Tadeu. As elefantas pareciam nem se importar quando ele parou e tentou tocar a orelha da Lenice, a mais próxima do Tadeu.
- Vieram da África ! respondeu um homem baixinho e calvo para a pergunta que o Tadeu ainda nem fizera. Era o sr.Boss, o dono do circo, que simpatizou com a figura do Tadeu e pensou que podia usa-lo como palhaço em algum espetáculo. Naquele momento o Sr.Boss não viu o Tadeu como um visitante curioso, mas como atração bizarra, um engolidor de espadas, faquir ou domador de leões que aparecera para abrilhantar seu negócio.
Caminharam mais um pouco e Tadeu viu um quarto elefante separado dos demais. Era Alice, a elefanta esquecida. Alice tinha a cor bege e se diferenciava de suas companheiras. Era levemente maior e mais orelhuda. O sr.Boss vendo o fascinio que os animais causavam no encantado rapaz, perguntou se ele não gostaria de cuidar dela.
Um grande sorriso pareceu rasgar o rosto do Tadeu que rapidamente aceitou o convite. Curioso, perguntou se trataria apenas da Alice ou de todos os outros elefantes.
- Meu problema é apenas com essa elefanta ! disse apontando para ela e explicou que os outros animais já haviam aprendido rapidamente o que em anos a Alice não conseguia. O fato é que ela, a elefanta esquecida, virou mesmo um incômodo; não participava dos espetáculos por pura incompetência e ainda dependia de alguém para alimenta-la, banha-la e outros cuidados que um bicho daquele tamanho necessitava.
- Alice onde está sua orelha ! perguntou Pimpão, um palhaço que passava pelo local. A elefanta ergueu a pata.
- Alice onde está sua pata ! se divertia o palhaço, naquele momento fazendo uma cruel palhaçada, rindo do animal que começava a balançar o rabo. O sr.Boss deu um suspiro de pura decepção e confidenciou ao Tadeu que aquele paquiderme não tinha mais jeito. Tadeu entendeu aquilo como um desafio e decidiu adiar todos seus, poucos, afazeres diários para não apenas ir morar naquele circo mas também "recuperar" sua mais recente amiga.
"Eu, sr.Big High Boss, dono do Gran Circo, contrato o sr. Tadeu, brasileiro, 30 anos, em caráter provisório para a função de tratador de elefante e asseguro que o mesmo garantiu estar em perfeito juízo mental quando aceitou esse trabalho e ainda se comprometeu a não deixar de fazer esse e porventura outros afazeres que o Gran Circo necessitar. Em troca, na condição de proprietário e chefe da atração, concedo ao trabalhador um salário mínimo, comida e moradia. Lembrando que esse contrato pode ser encerrado a qualquer momento sem maiores explicações por qualquer das partes envolvidas".
São Paulo, 20 de janeiro de 2005.
A "revelação" que Tadeu obteve naquele dia despertou nele um fascínio por zoologia que o fez estudar a vida daqueles animais. Começou como todo nerd obcecado começa: uma coleção de action figures (espécies de bonequinhos de brinquedo). Tadeu tinha três horas livres durante a tarde e usava esse tempo para varrer a cidade em busca de memorabilia elefantística, sua nova paixão. Em pouco tempo juntou uma impressionante coleção de livros, posteres, brinquedos e jogos alusivos ao mamífero que agora era sua própria vida. De fato as madrugadas do Tadeu nunca mais foram insônes. Agora ele viajava para África e Asia, encontrava o Babar, se via passeando pela floresta da Turma da Mata, dialogava com o Jotalhão e, quando o perigo parecia eminente, voava com o Dumbo ou pilotava um bug veloz abastecido pelo elefantinho da Shell. Sua carteira de motorista tinha um jogo do bicho com aposta no grupo doze, vestia uma camiseta com estampa do deus hindu Ganesh, comprava a Playboy porque ficou sabendo que a Luma de Oliveira havia sido clicada sentada na tromba de um elefante. Quando acordava, a cada manhã, Tadeu tinha a certeza de que era um homem feliz. Cada vez mais feliz.
No seu primeiro dia de trabalho a ansiedade era tanta que confundiu a posição dos elefantes. Quando encontrou um grupo de três trapezistas perguntou sobre a jaula da Alice. Foi recepcionado com sonoras gargalhadas.
- Siga nessa direção, depois vire à direita depois à esquerda ! disse um daqueles homens sem dar muita atenção àquele maluco que viera "treinar" a elefanta esquecida.
Tadeu tinha uma certa inteligência emocional difícil de explicar com palavras, decidiu que a elefanta precisava de espaço e sossego para aprender os números sem a pressão dos funcionários do circo que certamente não acreditavam nela. Difícil seria convencer o sr.Boss e o pior, transportar o bicho. Tadeu estava tão empolgado que não havia se dado conta de que nunca treinara bicho algum, nem cachorros, e que o desafio naquele caso era proporcional ao tamanho da Alice.
Aos solavancos trouxe o mamífero para um pequeno descampado atrás das lonas e sorriu quando viu três moleques escalando um muro para ver Alice de perto.
- Veja, eles gostam de você ! disse Tadeu, feliz ao notar que ela balançava o rabo. Os meninos se aproximaram e Tadeu decidiu impressionar os meninos:
- Alice onde está seu olho ? Logo a tromba do bicho tocava uma das orelhas. Gargalhadas gerais; a criançada achava Alice divertida.
A elefanta nervosa com a inesperada visita travou e se recusou até a obedecer as ordens do Tadeu. Um olhar reprovador calou as piadinhas das crianças, ele ainda aumentou a culpa dos meninos quando disse que suas risadas haviam ferido os sentimentos do animal.
Dizem que os elefantes nunca esquecem...Mas não era assim com Alice. Ela era um caso diferente, nunca se lembrava de nada.
Alexandre Pereira
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