domingo, 13 de abril de 2014

A conquista de Aníbal

     Para Aníbal de nada adiantava agora toda a retórica, o sorriso cativante e a lábia de vendedor. O cano gelado de um Taurus 38 mirava bem sua testa  e ele já começava  ver o filme de sua vida passar velozmente em forma de flashback.
     De nada adiantava tentar rezar. Era ateu e não sabia o Pai Nosso. Pedir socorro mentalmente para a falecida mãezinha, que ele jurava já ter lhe aparecido algumas vezes mesmo depois de morta, também lhe parecia sem sentido naquele momento.
     Agora isso não tinha importância alguma. Um leve tremor,  uma pequena irritação e o gatilho ejetaria do tambor o projétil que estouraria seus miolos.
     Para entender como Aníbal se meteu nesta enrascada é preciso regredir alguns dias. Num sábado de sol, como quase todos daquelas tardes de janeiro, ele cumpria o ritual, misto de profissão e hobby, que era pesquisar, minuciosamente, as barraquinhas da feira de antiguidades da praça Benedito Calixto, em São Paulo. Foi numa tarde assim que ele viu o robô. Não um robô qualquer, mas “o” robô. O mais raro e impossível espécime, talvez o mais disputado item de colecionador de toda a história da indústria de brinquedos mundial.
     O modelo Giant Sonic, um dos integrantes da Gang of Five, era um autômato de 40 centímetros de altura, corpo de lata, olhos que acendiam e braços móveis que balançavam e podiam agarrar objetos. Uma obra-prima do artesão japonês Masudaya criada na década de 1950. Este brinquedo era quase uma lenda, poucos tiveram a oportunidade de vê-lo e alguns juravam que o artefato metálico jamais existira.
     E agora aquela visão impossível do robô repousando no meio de barbies, batmans  e carrinhos de plástico... Incrível. Era demais até para o experiente  Aníbal, velha raposa do mundo dos objetos colecionáveis. A súbita visão da peça fez soar seu instinto de vendedor. Decidiu assumir comportamento normal e controlou o deslumbre. Perguntou com voz amigável:
- Quanto é o robô ?
     O dono da barraquinha sorriu e com o peito estufado repetiu o mantra daquele dia dizendo que a peça não tinha preço e que outro cliente, o Zé Luis, oferecera mil reais cobrindo todas as outras ofertas.
    Aníbal não se conteve:
- Pago quatro mil reais !  Replicou alçando da memória momentos como aquele. Aníbal tinha uma reputação de grande homem de negócios construída através de lances de inacreditável talento persuasivo. Sorria para si mesmo ao recordar do dia em que trocou um Opala 76 sem motor e um jet-ski usado por uma centenária biblioteca de três mil volumes, composta por livros raríssimos, herança de um jovem advogado que não gostava de ler, obtendo um lucro enorme.
      Mas o leitor deve estar se perguntando:
-  O que tudo isso tem a ver com a arma apontada para o nosso protagonista ? Explico.
    Ansioso em  fechar o negócio, Aníbal voltou para casa, localizou um catálogo importado com preços de brinquedos raros e com o auxílio de um estilete suprimiu dois zeros do valor do robô japonês. Copiou então a folha adulterada e apresentou-a, ao dono do brinquedo, mostrando o “valor real” da peça. Na falsificação engendrada por Aníbal, o raro Giant Sonic passara a custar apenas mil e quatrocentos dólares quando no mercado valia 140 mil. Para encurtar a história digo que Aníbal conseguiu comprar o robô graças à ousada operação.
     Mas Zé Luís, o comprador preterido no negócio, também tinha seus mistérios e possuía o mesmo catálogo com os tais preços. Ao se deparar com a folha adulterada logo explicou, para o dono da barraquinha, que haviam sido lesados pelo comprador espertalhão.
     Ofendidos, e com a vaidade abalada, prepararam uma vingança. Esperaram Aníbal por duas semanas até o dia que ele retornou à feira. Logo que o larápio surgiu correram em sua direção bradando as queixas. Foi aí que Aníbal se complicou:
- O mundo é dos espertos ! disse, acrescentando também que viajara para os Estados Unidos e vendera o robô por imorais 150 mil dólares obtendo um lucro de 296 mil reais. Uma gargalhada de desdém acirrou ainda mais os ânimos.
     O Zé, vencido no leilão do robô e disposto a reverter a situação, sacou então a arma que escondera debaixo da camisa e apontou para Aníbal. Mais; jurou disparar caso não tivesse seu quinhão da operação fraudulenta. Populares começaram a se aglomerar e uma roda se abriu.  Lambendo a foice da morte, o velhaco teve de preencher dois cheques ali mesmo em frente a centenas de testemunhas.
     Vencido, desmascarado e humilhado Aníbal voltou para casa arrastando o corpo cansado e a vergonha de não poder mais frequentar a feira onde, durante vários anos, fizera bons negócios. Por um segundo ponderou se não era a hora de largar tudo aquilo e arranjar “um emprego normal”. Naquela noite a cena do revólver apontado para ele o perseguiu
seu sono como  cachorro decidido  em morder pneu de motocicla. Após rolar na cama por horas finalmente dormiu.
    Acordou na manhã seguinte com o chamado do carteiro que soava a campainha e o esperava com uma caixa na mão. Percebeu que a correspondência vinha do exterior e curioso, abriu o pacote lá mesmo no portão.  Chorou ao ver o conteúdo e gargalhou ao avistar o Giant Sonic acompanhado de uma carta que dizia:  “Caro amigo ao checar minha vasta coleção de robôs percebi que já tinha o modelo que comprei por engano. Sabendo da raridade e como gostei de você, te devolvo para que possa vender a outro amante destes brinquedinhos maravilhosos. Em tempo: quando voltar para a Califórnia não deixe de me visitar para tomarmos mais uns martinis como naquele dia. Um abraço de seu eterno amigo Mike”.
     A sorte voltava a sorrir para Aníbal. Até quando perdia ele ganhava.
Alexandre Pereira

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