sexta-feira, 5 de maio de 2017

Lou Reed - Metal Machine Music

Segundo andar de um prédio na Avenida São Luís, centro da cidade. Toda vestida de preto, bota salto agulha, peitos saltando do bustiê de couro e segurando um chicotinho, estranho o visual da dentista.
- Pode entrar. Vejo que está com o rosto inchado!
Rosto inchado era um eufemismo. Eu parecia estar era com uma bola de tênis no lado direito da boca.
- Foi uma maçã do amor que eu comi ! Disse economizando as palavras para não sentir a dor horrível.
Ela pediu para que eu sentasse, regulou a altura da cadeira, empurrou uma mesinha cheia de martelinhos, pinças, agulhas e ajustou aquela luz forte que iluminou toda a minha cabeça.
- Abra a boca bem grande ! Disse enquanto um espelhinho percorria a cavidade entre lábios e faringe.
- Estou vendo umas cáries. Acho que pode ser problema de canal! Respondi dizendo que fizesse o que fosse preciso desde que cessasse aquela dor horrível. Ela pegou uma prótese e com uma caneta foi riscando os dentes na moldura. Explicou que cada marcação era um local bichado na minha arcada dentária.
Perguntou se eu autorizava o raio-X e o início da tratamento. 
- Manda ver! Concordei.
Ela mexeu novamente na altura da cadeira. Desta vez, minha cabeça ficou na altura do seu colo enquanto minhas pernas, esticadas para cima. Indagou se eu estava bem instalado. 
- Doutora, tenho problemas com falta de ar pode ligar o ar condicionado ?
Ela não apenas apertou uns botões como posicionou um ventilador enorme atrás da cadeira. Eu olhava aqueles zíperes e os peitões parecendo pular para fora e pensava o 
motivo dela não usar o avental branco como todo mundo.
- Quer que eu coloque uma musiquinha para relaxar? Às vezes ajuda! Falou sorrindo.
- Tem uns CDs que meu filho deixou aqui. Deixe ver...
-Tem Skank, Legião, Lou Reed e Faith No More. Qual você quer?
-Toca o Lou Reed ! Respondi. Torcia para ser o "Transformer" ou "Coney Island Baby".
Ela apagou a luz, saiu da sala e disse que tiraria o tal do raio X. Senti olhos arderem e um peso no peito como se estivesse tomando um soco do Mike Tyson. Esperei pelo Lou Reed, ele parecia atrasado.
Com sorriso sádico a dentista cantou nos meus ouvidos:
- Relaxa que a anestesia é só uma picadinha...
Urrei. A dor era tanta que comecei a delirar. Sem avisar, o motorzinho foi raspando minha gengiva, invadindo raízes e furando meus dentes. Com a maquinaria abafando o som do Lou Reed só restava imaginar as músicas que eu não ouvia. 
Torci para uma pausa, pediria para que aumentasse o som, mas ela não parou. Apanhei mais que Jesus em filme de Mel Gibson e nada do guitarrista do Velvet cantando para mim. 
A broca me ensurdecia e, já lobotomizado por tanta dor, desci a um Inferno onde não havia Beatriz. Numa hora estava de olhos vendados, amarrado diante um pelotão de fuzilamento, pouco depois me vi deitado numa sessão de acupuntura onde todas as agulhas eram seringas de heroína. Mas nada superou o terror de passear no lado selvagem da noite em companhia do Ronaldo Fenômeno e ser cercado por um trio de travestis pauzudos querendo me currar.
Desesperado, procurei cantarolar mentalmente a introdução de "Pale Blue Eyes", mas de nada adiantava. A remoção do tecido infectado me fazia chorar e tudo que eu pedia era um conforto auditivo do maldito CD player que, ou não havia sido ligado ou estava num volume muito baixo.
Devo ter ficado mais ou menos uma hora sendo cortado, raspado, apertado e violado. Num momento que decidi abrir os olhos fui cegado por uma luz branca.Tentei balbuciar algo, mas a doutora colocou uma borracha entre os lábios para poder prospectar melhor aquele cânion de tártaros e inflamações. Rezei para que Deus tivesse piedade.

64 minutos depois, finalmente o ronco do motor diminuiu e pude ver melhor onde estava. 
- Prontinho meu querido. Acabou! Disse a cirurgiã com os olhos injetados e sorriso do Coringa.
Fui me recompondo aos poucos.
- Doeu, mas agora está tudo bem! Falei aliviado pelo fim da sessão tortura.
-Por quê você não tocou o CD? Reclamei.
-Mas eu toquei você não ouviu ?
-Não tocou não, eu conheço a voz do Reed e não ouvi nada. Só o barulho infernal do motorzinho!
Ajeitando o rabo-de-cavalo e mirando as unhas negras ela cantarolou em voz infantil:
- O motorzinho que você ouviu era o disco! Um album instrumentaaal! Mastigava as 
palavras saboreando meu espanto.
- Instrumental? Não creio...
Ela mostrou o CD e eu folheei o encarte. 
-Ah, o tal "Metal Machine Music"! Que eu nunca havia ouvido e todos consideravam, 
com razão, o pior disco da história.
- Lou Reed... Seu filho da puta!
Antes de partir ela me informou que eu teria que retornar para preencher com platina algumas obturações.
Só tive  tempo de responder:
- OK doutora! Mas da próxima vez eu trago o álbum!

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