sábado, 20 de maio de 2017

Don McLean - American Pie

Tropeçando num balde deixado no meio do corredor, com calças encharcadas e botas sujas de  barro, ele tentava sorrir. Sorriso nervoso. Uma espécie de defesa contra o olhar reprovador dos funcionários da Capitol Records.
Aquele estranho emporcalhando o chão carregava uma caixa com a fita-rolo do seu segundo álbum e foi confundido pela ascensorista como entregador de pizza. A funcionária errara por pouco. O disco que aquele jovem trazia não era uma calabresa ou quatro-queijos, mas uma deliciosa torta de maçã em formato musical.
Em 1971 Donad McLean  ainda não era um rosto conhecido e tateava o sucesso de maneira tímida. Centenas de telefonemas encerrados de maneira abrupta,  cartas de recomendação devolvidas e lacônicas promessas, nunca efetuadas, de audição de suas demo-tapes formavam os ingredientes de um prato impossível de ser degustado.
O mantra ecoado por diretores artísticos de todas as gravadoras deixava um gosto amargo em sua boca:
- Não precisamos de um novo Dylan, nem de outro Donovan!
Don não desistia. Com o saveiro abastecido singrava as rodovias do país em busca de palcos onde pudesse mandar seu recado. Estrela escolar, autor de poeminhas ecológicos em defesa de florestas, ursos e índios sioux, ele carregava a certeza de poder mudar o mundo tocando violão.
Enquanto o sucesso não aparecia, passava as tardes lendo historinhas da Vovó Donalda e sangrando os dedos nas cordas de aço do violão. Aos 25 anos sentia-se o portador de uma verdade e não entendia o motivo de ninguém querer ouvi-la. Tinha uma missão, seria um novo Buddy Holly e faria deste desejo a inspiração, o gás que cozinharia suas pretensiosas ideias musicais.
Um ano antes, havia gravado de maneira rústica seu primeiro álbum, "Tapestry", uma elegia ao pintor Vincent Van Gogh onde as pinceladas rudes do holandês foram trocadas por canções ásperas, pouco requintadas, que serviram de passaporte para o mundo artístico. O disco saiu e não aconteceu. A carreira de McLean foi para a geladeira.
Um dia o telefone tocou:
- Don, venha até a gravadora para conversarmos!
O plano era simples: McLean deveria apresentar-se ao vivo numa rádio da Costa Oeste para divulgar seu trabalho. Tudo acertado. Era chegar, apresentar o cartão da gravadora e entregar a fita.
Um pit-stop no Texaco para comprar pizzas, refrigerantes, goma de mascar e não seria tão difícil cruzar o país. Seria até divertido. No toca-fitas "Sgt. Peppers" e "Highway 61 Revisited" como companheiros de viagem.

A noite caiu e a chuva também. Um boeing voando baixo no horizonte trouxe lembranças de fevereiro de 1959, quando desamarrou a pilha de jornais com a manchete da morte de Buddy Holly. Em cada casa que entregou o tablóide uma facada no coração. Não poderia mais fazer aquilo. Decidiu aposentar a bicicleta e pedir demissão.  A decisão fez com que passasse as noites ouvindo country music, descascando maçãs e preparando uma iguaria sonora nunca antes provada por ninguém.
Tchau, tchau "American Pie", dirigia o Chevy imaginando como seria o promo-video que o lançaria ao estrelato. No caminho uma pausa forçada. Uma ponte havia ruído e era necessário um retorno enorme. Decidiu não deixar este pequeno problema abalá-lo. De maneira imprudente tirou uma garrafa de uísque do porta-malas e bebeu com menores à beira da estrada. Ouvia histórias de valentia e proeza daqueles mini homens e registrava mentalmente tudo aquilo com a certeza que dariam ótimas canções.
Alcoolizado cantarolava:
- "Este será o dia que eu morrerei". Referia-se a Holly. Quem ouvia não atinava.
Antes de partir deixou uma luva de beisebol autografada:
- Um dia serei famoso e você terá um troféu.  Disse sorrindo.
Acelerando o saveiro ultrapassou a velocidade máxima. O ronco do motor abafado pelas gaitas de "Like a Rolling Stone". Don só acreditava em duas coisas: Na Bíblia e no rock'n'roll. Precisava correr, o tempo parado certamente cobraria seu preço.
Refletia:
- A música poderia salvar sua alma? Aprenderia a dançar antes do juízo final? E se o passo do adolescente desajeitado até o homem consciente tivesse demorado tempo demais?
Parou de pensar nisso quando o som das cítaras de "Within You Without You", Harrison enlouquecido, começou a ensurdecê-lo.
- Nada de Donovan por aqui! Malditos...
A madrugada veio e o verde musgo dos eucaliptos também. A visão encheu-o de esperança. Sua aparição desta vez seria triunfal.

Caminhando altivo, queixo levantado, casaco grená, lenço e chapéu de cowboy na cabeça, Don era o próprio Clint Eastwood em "O Cavaleiro Solitário". Arrancou suspiros e risadinhas das secretárias enquanto invadia os corredores da rádio KATM carregando mais uma vez a caixa com a fita-rolo do seu segundo álbum. Os DJs, reduzidos à condição de Gansolinos famintos, provaram e aprovaram aquelas canções.

No dia seguinte o assunto na KATM era o charmoso "funcionário da confeitaria" que havia deixado uma torta de maçã na mesa do diretor...

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