Tropeçando num balde deixado no meio do corredor, com calças
encharcadas e botas sujas de barro, ele
tentava sorrir. Sorriso nervoso. Uma espécie de defesa contra o olhar
reprovador dos funcionários da Capitol Records.
Aquele estranho emporcalhando o chão carregava uma caixa com
a fita-rolo do seu segundo álbum e foi confundido pela ascensorista como
entregador de pizza. A funcionária errara por pouco. O disco que aquele jovem
trazia não era uma calabresa ou quatro-queijos, mas uma deliciosa torta de maçã
em formato musical.
Em 1971 Donad McLean
ainda não era um rosto conhecido e tateava o sucesso de maneira tímida.
Centenas de telefonemas encerrados de maneira abrupta, cartas de recomendação devolvidas e lacônicas
promessas, nunca efetuadas, de audição de suas demo-tapes formavam os
ingredientes de um prato impossível de ser degustado.
O mantra ecoado por diretores artísticos de todas as
gravadoras deixava um gosto amargo em sua boca:
- Não precisamos de um novo Dylan, nem de outro Donovan!
Don não desistia. Com o saveiro abastecido singrava as
rodovias do país em busca de palcos onde pudesse mandar seu recado. Estrela
escolar, autor de poeminhas ecológicos em defesa de florestas, ursos e índios
sioux, ele carregava a certeza de poder mudar o mundo tocando violão.
Enquanto o sucesso não aparecia, passava as tardes lendo
historinhas da Vovó Donalda e sangrando os dedos nas cordas de aço do violão.
Aos 25 anos sentia-se o portador de uma verdade e não entendia o motivo de
ninguém querer ouvi-la. Tinha uma missão, seria um novo Buddy Holly e faria
deste desejo a inspiração, o gás que cozinharia suas pretensiosas ideias
musicais.
Um ano antes, havia gravado de maneira rústica seu primeiro álbum,
"Tapestry", uma elegia ao pintor Vincent Van Gogh onde as pinceladas
rudes do holandês foram trocadas por canções ásperas, pouco requintadas, que
serviram de passaporte para o mundo artístico. O disco saiu e não aconteceu. A
carreira de McLean foi para a geladeira.
Um dia o telefone tocou:
- Don, venha até a gravadora para conversarmos!
O plano era simples: McLean deveria apresentar-se ao vivo
numa rádio da Costa Oeste para divulgar seu trabalho. Tudo acertado. Era
chegar, apresentar o cartão da gravadora e entregar a fita.
Um pit-stop no Texaco para comprar pizzas, refrigerantes,
goma de mascar e não seria tão difícil cruzar o país. Seria até divertido. No
toca-fitas "Sgt. Peppers" e "Highway 61 Revisited" como
companheiros de viagem.
A noite caiu e a chuva também. Um boeing voando baixo no
horizonte trouxe lembranças de fevereiro de 1959, quando desamarrou a pilha de
jornais com a manchete da morte de Buddy Holly. Em cada casa que entregou o
tablóide uma facada no coração. Não poderia mais fazer aquilo. Decidiu
aposentar a bicicleta e pedir demissão.
A decisão fez com que passasse as noites ouvindo country music,
descascando maçãs e preparando uma iguaria sonora nunca antes provada por
ninguém.
Tchau, tchau "American Pie", dirigia o Chevy
imaginando como seria o promo-video que o lançaria ao estrelato. No caminho uma
pausa forçada. Uma ponte havia ruído e era necessário um retorno enorme.
Decidiu não deixar este pequeno problema abalá-lo. De maneira imprudente tirou
uma garrafa de uísque do porta-malas e bebeu com menores à beira da estrada.
Ouvia histórias de valentia e proeza daqueles mini homens e registrava
mentalmente tudo aquilo com a certeza que dariam ótimas canções.
Alcoolizado cantarolava:
- "Este será o dia que eu morrerei". Referia-se a
Holly. Quem ouvia não atinava.
Antes de partir deixou uma luva de beisebol autografada:
- Um dia serei famoso e você terá um troféu. Disse sorrindo.
Acelerando o saveiro ultrapassou a velocidade máxima. O
ronco do motor abafado pelas gaitas de "Like a Rolling Stone". Don só
acreditava em duas coisas: Na Bíblia e no rock'n'roll. Precisava correr, o
tempo parado certamente cobraria seu preço.
Refletia:
- A música poderia salvar sua alma? Aprenderia a dançar
antes do juízo final? E se o passo do adolescente desajeitado até o homem
consciente tivesse demorado tempo demais?
Parou de pensar nisso quando o som das cítaras de
"Within You Without You", Harrison enlouquecido, começou a
ensurdecê-lo.
- Nada de Donovan por aqui! Malditos...
A madrugada veio e o verde musgo dos eucaliptos também. A
visão encheu-o de esperança. Sua aparição desta vez seria triunfal.
Caminhando altivo, queixo levantado, casaco grená, lenço e
chapéu de cowboy na cabeça, Don era o próprio Clint Eastwood em "O
Cavaleiro Solitário". Arrancou suspiros e risadinhas das secretárias
enquanto invadia os corredores da rádio KATM carregando mais uma vez a caixa
com a fita-rolo do seu segundo álbum. Os DJs, reduzidos à condição de
Gansolinos famintos, provaram e aprovaram aquelas canções.
No dia seguinte o assunto na KATM era o charmoso
"funcionário da confeitaria" que havia deixado uma torta de maçã na
mesa do diretor...
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