Toronto, 15 de março de 1953. Jovens no salão fumando e concentrados na TV
sem volume tentavam entender o que dizia
o mestre de cerimônias que em breve apresentaria a luta do ano: Rocky Marciano
versus Joe Walcott. A noite gelada afastou o público do Massey Hall e ouvir
jazz naquelas circunstâncias não parecia tão sedutor. De costas para a rodinha,
dois roadies arrastavam o piano, regulavam a altura de microfones, checavam
fios e tomadas. Os que perguntaram o motivo de tanta arrumação foram informados
que o concerto surpresa seria gravado e lançado em LP. Mas quem tocaria mesmo?
Ah, um tal The Quintet.
A campainha do salão tocou ao mesmo tempo que o sino do
primeiro round. De um lado dois brutamontes de luvas e calção, do outro cinco
negros elegantes tomando seus lugares e afinando instrumentos. Estes últimos
seriam sumariamente ignorados não fosse um grito que repartiu a roda:
- Olha, o Bird!
Defecção imediata. Um concerto de Charlie Parker era algo
para se carregar a vida toda, um troféu, uma medalha de combate.
Mas não era só. Ao lado do pássaro, que trajava terno dois
números maior e bolso enorme para acomodar o saxofone de plástico, ele, o
trompetista bochechudo. Todos já haviam visto aqueles óculos de armação preta e
lentes fundo de garrafa de Mr. Dizzy Gillespie, 36 anos, lenda viva do jazz. Tossindo e segurando um
copo, Bud Powell, 29 anos, bigodinho cafajeste, cigarro apagado na boca e
gravata amassada de bêbado.
Um pouco atrás, o sorumbático Charles Mingus, 31 anos,
cavanhaque precocemente grisalho, varria o lugar com olhar zangado. Max Roach,
também 29 anos, sério e discreto esperou as luzes apagarem antes de sentar na
bateria.
Um cruzado de Marciano volta a dispersar o público dividido
entre os dois eventos, a final do boxe contra o concerto de jazz.
O Quinteto começa com pequenos jabs, "Perdido"
solo delicado do pássaro e bateria vassourinha dá início ao combate. Sete
minutos de puro bebop e gente disposta a deixar a TV. Neste instante Powell
teclava tão bonito que um rapaz ousadamente segurou a mão da moça na segunda
fila.
Combate duríssimo. No ringue Marciano castiga o fígado de
Walcott enquanto no palco os metais atingem o plexo solar da pláteia espantada
com "Salt Peanuts" a estrela da noite. Gritos, assovios, a comoção é
total. Parker parece musicar um desenho animado, Mingus balança as cordas do
baixo de maneira enlouquecida.
Na TV Walcott se esquiva bem e Marciano erra todos os
golpes. No palco a violência também desacelera com o início da cândida
"All The Things You Are". Nesse breve momento de calmaria Marciano
acerta uma esquerda matadora na testa do adversário que desaba. Gillespie,
ainda tocando o jazz e sem errar uma nota, desce do palco e também se rende ao catch na TV. Mingus fuzila
Bird com o olhar quase ordenando para tirá-lo de lá. O saxofonista entende o
recado e toca os primeiros acordes do
"Tema da Rua 52", mas não é
só: uma sequência arrasadora com as improváveis "Cherokee", "Embraceable
You" e "Hallelujah" golpeia os ouvintes com todo o léxico do
bebop e hardbop. Com Walcott sentado no chão, ar abobado, o juiz inicia a
contagem. Antes do dez O Quinteto ainda tem tempo para "Lullaby Of
Birdland" e "Sure Thing". O árbitro decide esperar mais alguns
segundos até levantar o braço e proclamar a vitória do pugilista ítalo-americano.
Meia dúzia de clientes em frente ao televisor. No palco o nocaute técnico veio
com o cruzado de direita seguido de uppercut de esquerda que foi a execução
magistral, espetacular, acima de qualquer superlativo, de "I've Got You
Under My Skin". Público atordoado. Agora a noite estava tão quente e
enlouquecida que nem mesmo a limousine de Marilyn Monroe e Jane Russell na
calçada dispersou a multidão que acabava de testemunhar um pouco da história da
música.
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